29 de jun. de 2011

O Mundo Mágico da Mordaça – Consequências da Criminalização de Debates sobre Descriminalizações


O maior choque entre os juristas, sobre a decisão do STF acerca da liberação da Marcha da Maconha, não é se a Excelsa Corte decidiu corretamente ou não. O que todos que possuem um razoável conhecimento na seara penal e constitucional deveriam se perguntar é “como foi possível que sequer essa discussão acontecesse?”.

Por evidência, deveriam retornar aos bancos das faculdades de Direito os ilustres membros do Ministério Público e do Judiciário que são incapazes de diferenciar dois conceitos tão diversos: a legítima defesa de que uma conduta deixe de ser tipificada como crime; e a incitação ou apologia a um crime.

A essencialidade da diferenciação é tão grande que sequer merece um estudo mais aprofundado, ou simplesmente alguma argumentação em um texto voltado a juristas. Por isso, repito, remeto os doutos supracitados de volta à cadeira de Direito Penal I. E, sobre o que se poderia discutir do tema, nenhuma palavra a mais deve ser adicionada ao genial voto do Ministro Relator da ADPF 187, cujos fundamentos deveriam ter calado a todos seus opositores.

Por hora, vamos apenas admitir a correção daqueles que se viram vencidos pelo STF. É melhor nos atermos nas conseqüências de quem é contra o direito da defesa de qualquer descriminalização. Um salutar exercício de imaginação do que devemos fazer.

Primeiramente, vamos encarcerar os responsáveis por todas as organizações a favor do aborto no país, cujas propagandas inclusive são divulgadas em redes de televisão aberta. Não suficiente, devemos prender também os estudiosos de Direito Penal favoráveis ao abolicionismo. E, para ir à forra, vamos estabelecer logo de uma vez um novo diploma legal denominado “Lei da Eterna Criminalização”, onde a ninguém mais será permitido dizer, e quem sabe um dia pensar, que é contra um crime.

Não vamos mais permitir aos que se dedicam à Política Criminal que questionem o legislador. Não! Se este ignorar todas as décadas de estudo da Sociologia em nosso país e no exterior, e insistir em lançar mão do preconceito e da ignorância em decisões normativas que, de fato, só vão aumentar a violência em nosso país... Então, que sejam presos os mestres e doutores que ousaram pesquisar e descobrir que a lei é ineficaz ou contra-eficaz.

E vamos além! Não devemos permitir, sequer, que os membros do Congresso Nacional abram a boca a favor da descriminalização de qualquer conduta. Chega de imunidade parlamentar, que só serve para a festa dos que fazem de nosso país uma baderna!

Como toda descriminalização até hoje adveio de um debate, vamos tornar delito novamente o adultério, por exemplo. Isso porque o debate desta natureza é proibido. Debater o fim de um crime é a mesma coisa que fazer apologia ou incitá-lo! Imaginem quantas pessoas, até então fiéis, resolveram trair porque um dia elas ouviram alguém falar “eu acho que adultério não deveria ser crime”. Famílias foram destruídas porque um malfeitor expressou uma opinião.

E a capoeira? Vamos prender mestres, alunos, todos. Devem ser imediatamente enviados para presídios localizados em ilhas, ou nas fronteiras, como determinava a legislação penal revogada, junto com os legisladores que descriminalizaram esta prática abominável.

Jamais tenhamos lugar para discussões! Uma vez crime, para sempre crime, a menos que... Sim, só façamos uma exceção, uma única possibilidade de descriminalização. Se, e somente se, a lei descriminalizadora for aprovada sem uma única palavra, sem um só debate, quase como sem querer, enquanto os legisladores olham entre si com medo de que alguém abra a boca, no fim da sessão, com as câmeras dos repórteres desligadas.

Mas, se não for deste jeito... Então não.

E vamos começar logo nossa sanha purificadora pelos Ministros do Supremo Tribunal Federal. Eles devem servir de exemplo à proibição da discussão de qualquer descriminalização. E, como não são aplicáveis os direito à reunião, nem à expressão do pensamento, também devemos lhes afastar a imunidade do regular exercício da atividade jurisdicional. Por quê? O que eles fizeram foi abominável, pois manifestaram seu pensamento contra o que devia ser crime de apologia, e, assim, fizeram apologia ao crime de apologia ao crime.

Quase uma ironia. Parece até sarcasmo. Esses ilustres Ministros, tão marotos... Devem ir para a cadeia!

Uma pena que Voltaire não está vivo, para o prendermos por um dia ter dito aquela célebre máxima: “posso não concordar com nenhuma das palavras que você disser, mas defenderei até a morte o direito que tens de dizê-las”. Maldito anarquista! Que Deus não lhe perdoe a alma criminosa.

Tudo isso para o bem e o enaltecimento da Democracia. E como seria esta fortalecida com tais gestos de amor? Ora, de tão evidente, dispensa fundamentações até mesmo em um texto não jurídico. 

Alguém discorda?




(Texto originalmente publicado no endereço http://www.coad.com.br/busca/detalhe/2787/42, em 28/06/2011)